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Dizia-se que no ciclo 802.882 após o Zep-Tepi,
um velho cambaleava sozinho pelo deserto de Desheret, ao oeste do Reino Vermelho,
lá — onde nem os deuses ousam abrir os olhos.

O pó já não lembrava a forma — e ele, o som de seu próprio nome.

Seus passos flutuavam sobre o chão calado, sem deixar rastro ou afundar.
Onde o silêncio é mais antigo que o vento — corpo algum se atreve pesar.

Seus fios grisalhos, endurecidos pela espera, tornavam-se como argila antiga sob o frio da noite.

Havia 3 noites em que havia clamado resposta.
3 noites em que permaneceu imóvel,
3 noites com areia nos olhos e poeira nos pulmões.

Ergueu os olhos para os céus — e não viu as três marias,
mas signos antigos, suspensos como fragmentos de alguma língua divina.
Talvez, um espelho — fazendo lembrar-se de si.

Lado a lado, pulsando em sincronia com as estrelas, desenhava-se uma membrana entre os mundos.
Tênue, translúcida. Um véu que respirava entre dimensões.

Sozinho, vivo — no presente, sob a lua de uma terra que não o pertence.

Seu espírito silenciou-se.
O tempo parecia girar em círculos.

Finalmente. Um estrondo.

O céu não abriu — dobrou-se sobre si mesmo.

Era como se a galáxia fosse um manto suspenso no ar, e os senhores do alto estivessem puxando-o suavemente para dentro.

Algo desceu — mas não foi de cima.

A própria geometria do mundo inclinou-se.
Um contorno impossível, feito de forma pura —
sem ângulos, sem cor, sem ruído.

Então… estava fora.

Flutuava no espaço cósmico, muito acima da Terra.
Abaixo, uma esfera azul-prateada flutuava devagar — sagrada como algo visto antes do nascer.

Ali — onde não havia mais nomes — compreendeu.

Não havia o que dizer.
Não havia o que pedir.

Ali — ele apenas era.

Silêncio.

Diferente de uma ausência de som — mas sim uma presença.
O próprio vazio querendo ouvidos.

A mensagem não veio como uma voz.

Não tinha idioma ou pensamento.

Uma lenta sequência de formas vivas se desenhava entre o ser e o não-ser:
algumas azuis — como lembranças profundas,
outras bordô — como sangue antigo sob novas luzes.

Ecoando juntas — desdobravam-se dentro dele como chamas não acesas.
A estrutura daquilo que sustenta tudo sem nunca ser vista.

Uma figura emergiu.

Era mistura de formas — remetente de um tempo onde não havia tempo.

Parecia ouvir o pensamento de uma estrela — ou de várias.
Tocado por ideias antes de virarem linguagem.

Nenhuma frase. Nem caos ou ordem.
Apenas um influxo de sentidos — uma maré de significados.

Por um instante, ele viu o avesso do tecido.

“Sabes que toda repetição é saudade da Forma.
Não buscas novidades, apenas a lembrança do que era inteiro.
O tempo nasce quando a forma hesita, e entre a essência e o erro, pulsa o tempo.
Os que avançam, esquecem — e os que voltam, veem.
E ver é o dom dos que ousam andar no esquecimento.
Relembras, primeiro vibrou — depois se chamou.”

E assim, o velho explodiu — junto ao cosmos.


Seu pai apontava com o dedo indicador para uma estrela — no rosto, um leve sorriso.

— Aquela, meu pequeno garoto — é Nesheret, disse.

O garoto silenciosamente a observava — ela pulsava, como uma memória esquecida clamando lembrança.

— Foi lá que o Sia-Tep-Heru explodiu, abençoando todos os povos com sua luz.

O velho Sia-Tep-Heru não falava mais — mas brilhava.
Era a voz que ecoava no escuro — no infinito.

Ao lado do pequeno menino, a fogueira cintilava lentamente — como se inspirasse em seu próprio tempo.

De lá, ao sul, viam as três pirâmides dormir.
Não pareciam construções, mas sombras perfeitas intuídas por uma mente que antecedia o tempo.

Entre elas, o vento soprava sem tocar.
Parecia carregar grãos de areia e murmúrios nunca ouvidos.

Toda primavera iam acampar — juntos — nas colinas de Abu Rawash.

E — toda primavera, ele voltava de lá diferente.

O chão era quente, mesmo sob a lua — como se o mesmo sol que um dia iluminou o velho ainda estivesse preso ao redor das pedras.

Durante o dia, o vento cortava o topo das colinas como uma lâmina afiada,
e — aos finais de tarde, era possível ver a planície toda — como uma pele esticada pelo tempo.

As estrelas, vistas de lá, pareciam mais antigas — mais ancestrais.
Como os olhos de uma sábia senhora vigiando os traços do mundo.

Ao lado, viam a não finalizada pirâmide de Djedefre — filho de Quéops.

— Tudo que antecede a forma, tudo que um dia aspirou ser. — disse o pai, enquanto fitava as ruínas.

O pai deitou-se sobre a areia quente, enrolado em um manto de linho grosso — e, com os olhos ainda velando os céus, murmurou:

— Um dia, tu também — meu filho — há de lembrar…

E então, fechou os olhos como quem já havia contado o que lhe cabia.

O garoto ficou ali, calado — sentado à beira da fogueira.
Suas chamas estalavam baixo, falando a língua das coisas que envelhecem em paz.

Sentiu sede. Chacoalhou rapidamente seu odre de barro — ainda morno — entre os dedos.
Nada.

Levantou-se em silêncio e caminhou até o riacho no pé da colina.
A água parecia escorrer lenta, como se contasse o prefácio de uma história prestes a acontecer.

Voltou com passos lentos, e viu seu pai já respirando fundo — totalmente entregue ao sono.

A fogueira? Ainda ardia, mas havia algo diferente.
As chamas pareciam dançar com mais precisão — como atores que ensaiam um gesto.

O vento não soprava ao acaso, mas movia-se ao redor da fogueira, como quem circula um altar sagrado.

E então, ele viu.

No centro do fogo, uma forma começou a surgir — devagar, sem pressa, sem matéria.

Primeiro, a dobra da capa.
Depois — os contornos ao redor do rosto,
tudo feito de brasa e poeira antiga.

Os olhos pareciam dois espelhos opacos — e, mesmo sem boca — o garoto sentia-o a sorrir.

Era o velho Sia-Tep-Heru.

— Pois, pequeno garoto — vou lhe contar o que nunca há de ser dito.

Assim como as três pirâmides que dormem sob o céu escuro,
a história tem uma base e um ápice.

Na base, um quadrado.
Quatro lados iguais — perfeitos. Firmes, orientados aos quatro ventos.

E é lá que tudo repousa.

Mas à medida que se sobe,
à medida que se ergue andar sobre andar,
o que era forma sólida começa a evaporar.

… E o quadrado, esquecido de si, já não é mais quadrado.
Os ângulos se desfazem, as linhas se inclinam.
Tudo se torna ruído.

No alto, resta apenas um ponto — como um último pensamento onde não há chão.

Assim é a história do Não-Nomeável.

Da clareza ao silêncio.
Da terra até a dissolução nos céus.

Quanto mais longe da base — mais longe do real.
Tudo que sobe demais — esquece do que o sustenta.

— Pois escuta, pequeno.

Houve um tempo em que o topo quis ser base.
Um tempo em que um rei nasceu do alto —
não do ventre de mulher, mas da vontade.

Seu pai era sua mãe.
E sua mãe também era seu pai.
Juntos, eles eram o traço antes do traço.
Medida antes do tempo.
Eram o Um.

Dizem que desse Um — o Não-Nomeável —
emanava tudo sem querer nada.
Pois era perfeito, e o perfeito não move.
Ele era a forma.

Mas algo aconteceu — ninguém sabe muito bem o quê.
Um eco? Um reflexo? Uma hesitação?

Dizem que quis entender a si próprio.
Não por necessidade, mas por desejo.
Desejo de espelhar. De aumentar.

Dessa reflexão surgiu o primeiro rei.
Nasceu à margem do Um.

Não era inteiro igual aos pais, mas carregava em si potencial infinito.
Dentro, tinha água — e também fogo. Alto e baixo, bom e ruim.

Nasceu como um traço fora do traço — uma curvatura breve no manto liso da eternidade.

Não era mal — mas era querer. Era reflexão.
E só por isso — não havia mais a perfeição.

Chamam esse rei de Kha-Apet.

Andou milênios por terras virgens — buscando o auto-querer.

E lá — no meio do nada, declarou:
“Aqui será o centro.”

A terra dobrou-se.
O solo firmou-se em pedra.
Os rios começaram a correr.
Pássaros e borboletas a voar.

Ao redor de si, traçou um limite.
Não era um muro, tampouco uma cerca.
Mas uma ideia.

Era como se dissesse: “Dentro é meu. Fora é ausência.”

E então surgiu a primeira ilha — fora da forma pura.

Lá reuniu aqueles que vieram ao seu chamado.
Ecos, servos, seres ainda não formados.

Deu-lhes funções, atribuiu lugares.
Surgiram os ritos, palavras e símbolos —
cópias do silêncio dos pais.
Tudo agora cheio de som.

Fez pirâmides invertidas, relógios sem hora e templos sem céu.

E então, disse:
“Pois eis minha criação.”

Assim foi.

O rei envelheceu, mas não morreu.
Tornou-se templo.

E seus filhos — muitos — herdaram os limites da ilha.

O primeiro filho — Khesu-Tep — achava o contorno estreito demais.
Disse: “Refarei o mundo do pai — mas mais puro.”

E traçou uma nova margem dentro da margem.
Ergueu novos símbolos, mais nítidos, mais precisos.

E assim nasceu a Segunda Ilha.

Lá, os filósofos governavam,
os guerreiros protegiam
e os trabalhadores produziam.

Cada ser ocupava o lugar exato para o qual nasceu.
Sem imposição — mas por harmonia.

Não havia fartura — mas também não havia falta.
A luz do sol alegremente iluminava o dia,
enquanto a lua fazia seu papel durante a noite.

Ao centro, Khesu-Tep juntou setenta e sete pedras — lisas e ancestrais —
alinhando-as em espiral sobre o solo firme.

Entre elas, mesclou fios de sílica com intenção.

Não visível ao olho desatento — ao menor sopro de vento — vibravam levemente.

Como um toque de mágica, um leve ritmo emergiu das pedras —
um compasso leve, sutil — como batimento cardíaco de uma criatura adormecida.

Era belo.
Era funcional.
Era exato.

E assim foi…

A terceira ilha foi feita de simetria exata — onde até os pensamentos desdobravam-se em ângulos perfeitos.
A quarta, de vidro, terra e cálculo — onde tudo era visto, mas nada era sentido.
A quinta, foi velada de mística e oculto, como se quisessem relembrar o passado — mas sem saber o que foi perdido.

E assim as ilhas continuaram.

Cada nova geração acreditava estar mais próxima da perfeição — da forma última.
Cada nova margem parecia corrigir o erro da anterior.

Mas toda correção partia de uma base já esquecida.
E quanto mais se construía,
mais longe ficava o Um.

O tempo antes era um rio, que somente fluía ao final de tarde.
Mas agora pulsa como um servo acorrentado,
girando engrenagens num ventre de ferro.

— E agora, pequeno… — disse Sia-Tep-Heru, com as brasas refletindo em seu rosto —
há uma última ilha.

Uma que ninguém vê — pois já não tem forma.

Ela vive nos que sonham em silêncio.
Nos que pressentem que o gesto não pode ser recriado —
mas apenas lembrado.

E talvez… um dia… alguém encontre o caminho de volta.


Ao amanhecer, não havia mais o garoto — e nem o pai.
Apenas o silêncio morno da areia,
e as memórias de suas primaveras lá.

Nada indicava o que houvera ali,
exceto a brasa ainda viva,
como se aguardasse mais uma história para contar — talvez, a tua.

Logo acima das 3 pirâmides,
três estrelas cintilavam,
alinhadas como uma trindade sagrada.

No topo, ainda pulsava Nesheret, a estrela do velho —
e - logo abaixo, duas novas luzes haviam surgido, formando um triângulo.

Tinham um brilho mais suave, calmo,
como quem acabou de chegar.

Dizem que, ao fitar essas estrelas,
sente-se uma saudade sem causa,
e — por um instante, o tempo se dobra.

Talvez não tenham partido.
Talvez apenas atravessaram.

E agora, vivem onde vivem os que lembram por dentro.

(Manuscrito encontrado em escavação de 1882 ao pé de Abu Rawash)

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