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Ainda moro naquela casa azul.
Não por teimosia — mas por pertença.
Algumas almas nascem com raízes, e as minhas plantei entre as paredes de madeira.

Lá fui menina, mãe, viúva — e fui silêncio.
Agora sou todas ao mesmo tempo.

Meu rosto carrega sulcos do tempo como raízes de alguma árvore antiga.
Meus cabelos, já brancos e amarrados com uma fita de algodão vermelha desbotada — herança de dias idos — caem como névoa sobre os ombros.

Meus olhos, pequenos e profundos, já viram o que livro nenhum ousaria contar.

Minhas mãos — calejadas, calmas, pacientes — têm a firmeza de quem já curou febres, colheu orações e enterrou amores.

Sou uma mistura de ervas, panos e esperas.

Além de velha — sou ancestral.
Sou memória viva de tudo o que a casa azul já foi.

Ela envelhece comigo.
Madeira e carne rangendo sob o mesmo tempo.

A fachada guarda o azul como se fosse sagrado — como se escondesse um segredo.
Dois pequenos degraus levam à varanda, que se abre como um abraço de avó no final de tarde.

Na lateral esquerda, um canteiro de girassóis que resiste a todas as estações.
Igual a mim — no inverno, eles também parecem esperar.

Às vezes, falo com os girassóis.

Um galho encostado sob a cerca branca.
A janela com o trinco antigo — que só fecha quando quer.

À frente, o portão de madeira branca meio aberto.
Nunca trancou nada.
Tudo sempre se guardou por afeto — como se uma proteção invisível vigiasse o indesejado.

Ela não tenta impressionar — apenas permanece.
Conta histórias como um álbum de fotos antigo.

E eu gosto assim. Sempre gostei.

A tinta azul descasca devagar — como alguém que perde a memória com dignidade.

Não é um azul qualquer.
É um azul vivido, desbotado, como os olhos de quem já viu demais — e ainda assim olha com carinho.

As janelas são um pouco tortas, mas fiéis.
Abrem e fecham conforme o humor do dia.
No final da tarde, filtram a luz como vitrais de igreja de cidade pequena.

A varanda tem duas cadeiras:
Uma para mim, outra para presenças que vêm quando a tarde escurece.
E elas sempre vêm.

O chão de madeira estala, mas não reclama — apenas me acompanha.

Nos quartos, os móveis sabem meu nome.
A cama guarda todos os sonhos que tive.
O espelho do banheiro aprendeu a não me julgar.

A mesa da sala sabe das cartas que não enviei. Dos poemas que rasguei.

A casa respira.
E respira comigo.

A lareira queima devagar — como uma memória que insiste em permanecer.


Todas as tardes, desço.
Não por hábito — por chamado.

A chave sempre está lá, pendurada atrás da porta da cozinha.

A escada range sob meus passos — sei que não por medo, mas por memória.

Cada degrau é uma lembrança.
Cada passo, uma oferenda.

Diante da porta do porão — eu paro.
Faço silêncio.

Coloco a chave na fechadura com reverência, como quem abre um relicário.

Ali, a luz é mais tímida.
Reflete o que em mim não morreu.

Minha biblioteca.

Feita de livros, sim — mas também de cartas nunca enviadas, vozes que só eu escutei, lágrimas que só eu derramei.

De gritos, silêncios, felicidades.
De caixas que não guardam coisas, mas sentidos.


E foi ali que, certa tarde, os mortos vieram.

Não bateram.
Vieram como perguntas que nos seguem pela vida inteira.

Viemos de Jerusalém, disseram.
Não encontramos o que procurávamos. Onde está Deus? Está morto?

Eu os recebi em silêncio.
Preparei o chão com panos antigos.
Ofereci-lhes chá de hortelã. E luz.
Mesmo no porão, acendi luz.

Eles se sentaram entre estantes.
Folhearam meus cadernos.
Cheiraram minha solidão como quem reconhece uma flor rara.

Tu sabes, disseram.
Tu viveste todos os ciclos. Sabes o que ninguém ousa escrever.

Vos ofereço silêncio, cadeira e uma vela, e digo:
A alma não se cura com mandamentos — mas com escuta.
O saber verdadeiro é o que sangra junto.
E há mais sabedoria em uma tarde com vento do que em mil tratados sobre o divino.
Deixem que o vazio vos queime até se tornarem chama também.

Alguns choraram. Outros dormiram. Um deles pediu para ficar.
Dei-lhe uma manta. E um canto entre os livros.

A cada tarde, mais mortos vinham.
E eu os recebia.
Não como fantasmas — mas como filhos pródigos.

Eles subiam.
Não para o céu — mas para dentro.

E eu ficava.
Mais leve.
Mais inteira.


Hoje, quando me levantei da poltrona do porão, não havia pressa.
A luz filtrada tocava o chão como uma bênção final.

E então soube:
Era hora.

Com cuidado, abri cada caixa.
Toquei os objetos com gratidão.

Separei cartas, relicários, fotografias, sonhos.
Fui guardando tudo numa única caixa.

Apenas uma.

Ali coube tudo o que importava.
Não porque era pouco — mas porque já estava inteiro.

Fechei a tampa com reverência.
Como quem encerra um rito — não para esquecer, mas para guardar.

A maçaneta girou com um clique suave.
Como se dissesse: “Agora sim. Vá em frente.”

Subi os degraus.
Um a um.
Sem medo.

A casa azul me esperava inteira.
E eu — agora — também era inteira.


E a Senhora da Casa Azul, sentada na varanda, envolta pela tarde que descia lenta, sabia — sem dizer — que nenhum morto estava mais perdido.
E nenhum vivo, mais sozinho.

O homem está lá, e Deus aqui.
Lá, fraqueza e nulidade; aqui, poder criativo eterno.
Lá, nada além de trevas e umidade gélida.
Aqui, pleno sol.

Os mortos silenciaram-se
e subiram como fumaça
acima da fogueira do pastor,
que, pela noite, velava seu rebanho.

Acendeu um cigarro com a calma de quem não deve nada ao tempo.
A fumaça subiu lenta — como os mortos que haviam partido em paz.

No colo, um velho caderno de capa bordô.
Abriu na última página em branco.

E pôs-se a escrever.


Poema na última página

Agora que tudo voltou,
não preciso de mais nada.

Tudo que estava espalhado,
em uma só caixa.

Tantas histórias, nomes esquecidos…

O que era ausência — virou repouso.
O que era frio, ficou quente.

Já fui sombra, flor e janela,
mas hoje sou terra — e só isso basta.

A casa não fala,
mas compreende o que sou.
Não pergunta — apenas abriga.

O tempo foi —
mas eu fiquei.
E às vezes, ficar
é a forma mais profunda de queimar até o fim.

Fechou o caderno, tendo a certeza silenciosa de que
— enquanto houver uma casa azul de pé, a alma do mundo ainda respira.

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